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domingo, 20 de março de 2016

LUCIDEZ




A lucidez diante das crises

Autor Flávio Bastos - flaviolgb@terra.com.br


A lucidez diante das crises


"Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, cegos que veem, cegos que vendo, não veem". (José Saramago)

O conceito de lucidez nos leva à mente limpa, à coerência de raciocínio e à capacidade de discernimento. Fatores, que reunidos, demonstram numa pessoa a percepção aguçada, a clareza de argumentos e a fácil compreensão dos sentidos e das sensações.

José Saramago, em "Ensaio sobre a cegueira", uma metáfora da vida em sociedade, registra "que a cegueira social pode ser provocada pelo distanciamento existente entre os indivíduos nas sociedades modernas. Um distanciamento que leva cada um a observar apenas os seus interesses, interesses tais que só serão limitados pelo caminho da conveniência". 

"Se podes olhar, vê, se podes ver, repara". Já na epígrafe de "Ensaio sobre a cegueira", Saramago mostra sua real interpretação para a cegueira exposta no livro. Mais do que um retrato de como as pessoas agiriam se não pudessem enxergar, o autor propõe uma análise da sociedade em que vivemos.

Saramago joga com a indiferença entre as palavras ver e olhar. O olhar aparece como a própria visão, o ato de enxergar. E o ver aparece como a capacidade de observar, de analisar uma situação. E para ele, a maior dificuldade do ser humano é enxergar além do superficial.

A cegueira apresentada por Saramago pode ser encarada como a alienação do homem em relação a si mesmo. A perda de um dos sentidos aparece como pano de fundo para fazer um retrato de nossa sociedade: individualista, oportunista, chantagista, preconceituosa e por vezes solidária. Além disso,  faz-nos refletir sobre a moral, a ética e as nossas próprias convicções.

Davi Lago, em "A necessidade urgente de lucidez", avalia que a ausência de sentido para a vida no mundo contemporâneo é notória. Os grandes pensadores e pesquisadores da cultura pós-moderna concluem a mesma coisa: vivemos numa sociedade desorientada. O vazio existencial que emergiu na cultura é tão grande que até mesmo grandes questionamentos filosóficos mudaram. O pensador Jean Baudrillard afirmou que antigamente a pergunta existencial era: "Por que há alguma coisa em vez de nada?". Mas a pergunta real hoje é: "Por que há apenas nada em vez de alguma coisa?"

É através da percepção aguçada dos problemas, que observamos os detalhes "insignificantes" de nossa vida diária, mas que podem alcançar uma dimensão considerável para a nossa saúde física, mental, emocional ou espiritual, se não considerarmos os seus significados e efeitos.

Diante das crises, seja ela pessoal, social, profissional ou familiar, a lucidez torna-se uma ferramenta imprescindível na avaliação das verdades inseridas nos fatos. E como a verdade -que pode ser a verdade de cada um- não sobrevive sem o senso de justiça, a responsabilidade em lidarmos de forma justa, coerente e consciente com os fatores que desencadeiam a crise, exige mente aberta e consciência em pleno processo de expansão. Caso contrário, permaneceremos no labirinto da confusão, sem condições de visualizarmos o problema central em função da interferência de energias que agem na capacidade de discernimento. Energias psíquicas que representam um deturpado conjunto de crenças e valores que internalizamos ao longo de muitas vivências no plano físico.

Portanto, assumir a sua verdade-justiça diante das crises significa apropriar-se de sua lucidez, ter condições de administrar conflitos e viver em paz com a sua consciência. Porém, esse "assumir" exige autoconhecimento, ou seja, conhecer as verdades de si mesmo que encontram-se ocultas em seu inconsciente profundo, e a partir desta descoberta, estender ao outro a lógica da verdade através do mecanismo da compreensão, aceitação e amor. Desta forma, referiu-se o poeta checo Rainer Maria Rilke, ao registrar com muita lucidez que "todos os dragões nas nossas vidas são princesas que estão apenas à espera de nos ver agir, apenas uma vez, com beleza e coragem. Talvez tudo aquilo que nos assusta é, na sua essência mais profunda, algo desamparado que quer a nossa compreensão e amor". 

Enquanto cultivarmos sentimentos mesquinhos, não teremos uma visão ampla de nós mesmos, do outro e da sociedade à nossa volta. Somente a libertação destes sentimentos através do processo de autodescoberta, proporcionará a análise ou avaliação dos fatos pela lupa da verdade-justiça inserida na capacidade de visualizar os fatos sem preconceito ou prejulgamento.

O desenvolvimento da lucidez nos permite "ver e reparar" aquilo que está oculto nos bastidores do fato, isto é, aquilo que não enxergamos além do superficial e que pode esconder interesses egoicos camuflados de verdade-justiça.

A lucidez nos permite despertar para uma postura mais autêntica e verdadeira (de si mesmo), protegendo-nos das armadilhas de nosso ego e do ego alheio, pois a percepção aguçada nos leva a adotar uma atenção flutuante e permanente sobre os acontecimentos que envolvem a nossa vida e a vida na sociedade.

A lucidez nos ajuda também a detectar as manipulações oriundas dos meios de comunicação, que adotam a estratégia de incutir ideias, padrões de comportamento, valores e crenças em suas programações, com o intuito de atrair o leitor, ouvinte ou telespectador para aquilo que consideram "certo ou errado", mas que oculta nas entrelinhas da mensagem, mecanismos persuasivos -e até perversos- que visam única e exclusivamente a realização de seus interesses.

Enfim, a lucidez ou percepção aguçada é um excelente antídoto contra o veneno da desarmonia relacional, conflitos internos e situações de manipulação, onde os egos inflados ou desajustados estão a favor de interesses escusos e contra interesses que visam contemplar o ideal de bem comum.

Despertar para o aprendizado da lucidez através do autoconhecimento é um valioso instrumento de ajuda a si próprio, ao próximo e à sociedade a qual pertencemos, pois a luminosidade emitida por um indivíduo ou por um coletivo de pessoas torna-se fundamental para a "higienização" de mecanismos da malha social contaminados pela corrupção endêmica e pela perversidade disfarçada de boas intenções.

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