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terça-feira, 20 de janeiro de 2015

VALOR DA VIDA



Foto: Reuters

'Você prefere perder sua vida à vista ou a prazo?'

 
 
Marcelo Mirisola diz que não vê diferença entre pagar imposto de renda e FGTS e terminar os dias diante de pelotão de fuzilamento
 
 
 
 
 
 

Vida leva eu - Marco Archer ( 1962-2015)

 
Marco Archer Cardoso Moreira (Foto: Reuters)
Marco Archer Cardoso Moreira (Foto: Reuters)Uma lembrança da infância. Bolo de laranja.
 
O primeiro beijo. O céu azul do Rio de Janeiro. O sorriso de uma negra. O que Marco Archer teria vislumbrado segundos antes de levar um tiro no coração? Na minha cachola, aqui e agora, a única coisa que me ocorre é Zeca Pagodinho "Deixa a vida me levar/ vida leva eu/ sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu".                      
              
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"Ninguém entra no mesmo rio duas vezes", essa frase é atribuída a Heráclito de Éfeso que, segundo a lenda, mergulhou num barril de estrume para se curar de uma hidropsia.

Ninguém entra num rio, nem num barril de merda duas vezes. Heráclito acreditava que o calor do estrume absorveria a água acumulada dentro das catacumbas de seu corpo( hidropsia).O filósofo dos fluxos e do movimento apostou na cura pela merda, e se afogou na mesma.

Também existe a possibilidade de Heráclito ter emergido do barril de merda, e de ter sido trucidado pelos seus cães, que não reconheceram o cheiro da nova sabedoria do dono.

Heráclito de Éfeso é um dos meus filósofos favoritos, ao lado de Diógenes de Sinope, Luciano de Samósata, e Belchior - que é apenas um rapaz latino americado, sem amigos importantes e vindo do interior do Ceará, Belchior de Sobral. E, claro, Zeca Pagodinho de Xerém.

Isso tudo para falar de Marco Archer. O traficante brasileiro que, domingo passado, foi executado na Indonésia.

Ninguém aqui seria louco de isentar os homens de suas culpas, de seus erros, muito menos de suas ações impetuosas e omissões galopantes; agindo assim, o "pacificador" estaria sendo negligente com os homens que julgam os próprios homens e que se alimentam exatamente desse julgamento para seguir em frente com seus cânceres e consciências aplacadas.

Antes de prosseguir, quero dizer que desconfio desse ente que os místicos chamam de sociedade, e das leis paridas pelas sociedades, de modo que qualquer decisão vinda em nome das tais sociedades, independentemente de serem autoritárias ou não, tanto faz se aqui ou na Indonésia, qualquer deliberação é uma temeridade.

Não vejo diferença entre pagar imposto de renda, ICMS,CPMF, FGTS e quetais ( inclua na lista o condomínio do prédio, a escola dos seus filhos e a TPM de sua mulher); diferença alguma entre pagar IPTU e terminar os dias diante de um pelotão de fuzilamento na Indonésia. A única coisa que muda é a aplicação da sentença: você prefere perder sua vida à vista ou a prazo?

Desde muito cedo Marco Archer optou pela vida à vista. Jamais pagou imposto de renda. Nunca teve talão de cheques. Na adolescência atuou junto aos cartéis colombianos, levando cocaína de Medellín para o Rio de Janeiro. Em pouco tempo se tornou um dos traficantes mais solicitados e festejados na paradisíaca Bali. O malandro carioca viajou o mundo, frequentou as melhores baladas e dormiu com as mulheres mais cobiçadas do planeta.

Em 2005, o repórter Renan Antunes de Oliveira entrevistou Marco Archer na prisão de Tangerang, na Indonésia: “Sou traficante, traficante e traficante, só traficante. Nunca tive um emprego diferente na vida. Tomei todo tipo de droga que existe".

Indagado sobre o risco que corria se fosse pego traficando drogas na Indonésia, disse: "Ora, em todo lugar do mundo existem leis para serem quebradas. Se eu fosse respeitar leis nunca teria vivido o que vivi. Não posso me queixar da vida que levei".

Vida leva eu.

O problema todo é conciliar o fluxo: a história mal contada, com a vontade de contar outra versão. A versão de Marco Archer não colou. Na Indonésia, não.

Pela revogação de todas as penas de morte, porque a vida é uma merreca e não tem o alto valor que lhe atribuímos. Se dependesse de mim, ninguém seria julgado e todos seriam culpados de antemão. E a vida - a vida vivida até o fim, com direito a pelo menos dois banhos no rio de Heráclito - seria a sentença que eu aplicaria a padeiros, confeiteiros, jogadores de Rugby, chapeiros do McDonald's, santos, assassinos e todos os homens e mulheres desse mundo cheio de injustiça e iniquidade. 


fonte: blog do Marcelo

Marcelo Mirisola

Marcelo Mirisola tem 47 anos, é paulistano e radicado na ponte-rodoviária Bixiga-Rio de Janeiro há dez anos. Escreveu mais de uma dúzia de livros, dentre eles destacam-se Bangalô, O Herói Devolvido, Joana a Contragosto e O Azul do Filho Morto. Não se identifica com nenhuma corrente da literatura brasileira contemporânea, embora alguns críticos o considerem o Pedro Alvares Cabral da autoficção aqui em nossas plagas. Também é dramaturgo.




        
 

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